segunda-feira, novembro 20, 2006

Algo Mudou (Eduardo)

ALGO MUDOU





Hoje eu acordei diferente, porra eu tô me sentindo estranho, alguma coisa mudou e eu não consigo identificar, o que é, as goteiras da brasilite tão aqui, os furos de balas dos gambé nas madeirite também, e aliás eu ainda tô morando numa casa construída de madeirite, ah! Caralho deve ser isso, se pá tem pãozinho, já pensou um com manteiga, café com leite, ou talvez até leite com nescau, que rupam os tambores, momento de expectativa, eu vou abrir o armário, armário entre aspas né, eu vou abrir o conglomerado de caixote de feira construído pelo meu pai, 1,2,3 e ..., infelizmente também não é isso, vaga pros meus irmãos estudar não é, os 8 tão dormindo, eta sono corajoso, dormir no papelão em cima dos blocos nem Tom Cruise no Missão Impossível, o cheiro ainda é o mesmo “esgoto” , é que eu moro quase dentro do córrego, já pensou nisso, você pode usar colônia francesa, sua família ganhar o prêmio de higiene nº 1 do universo, que sua goma sempre tem cheiro de bosta, ou às vezes de carniça, quando uns gato, uns cachorros resolvem vir se decompor, pior que os animais só as vítimas da polícia boiando embaixo da minha janela, esperando o IML, chegar, que diga-se de passagem é o mais frequente.
Minha mãe e meu pai já sairam, o carro não tá lá fora, nem o pangaré cheio de carrapato que puxa ele, já foram catar papelão, isso sim eu queria mudar, já cansei de chorar escondido, lembrando os boys filho-da- puta, dos condomínio de luxo mandando os porteiro humilhar eles, xingar eles quando eles mexem na lixeira, daqueles porcos, vou acordar o meu irmão...
- Ei, ei acorda aí, ó toma conta dos moleques que eu vou dar um role, se você bate neles quando eu voltar eu te arrebento heim, o nenê chora é de fome, não é fogo no cú, como você disse, e como sempre não tem café da manhã, liga o preto e branco e tenta enganar o estômago vendo desenho, quando passar comercial de brinquedo, cê tá ligado né?
- Sei, sei, tô ligado, fechar os olhos pra não ficar iludido.
- Isso mesmo, porque 1º vem a ilusão, 2º a frustração, 3º a tristeza, 4º a revolta e 5º alguém pagando por tudo isso.
É foda eu não entendo os cusão que faz os brinquedos, muito louco, moderno pra que? Pro boyzinho brincar 1 minuto e jogar no lixo enquanto a gente passa a infância toda sonhando, se eu tivesse uma fábrica de brinquedo meu intuito seria uma infância feliz pra todos independente de cor, raça, classe social, esse papo aí, que adianta ser o projetista do brinquedo mais divertido, legal, mas que só pode ser brincado por 10% das crianças do Brasil.
- Falou moleque cuida da casa direito, tchau.
Puta tá garoando, a única coisa de graça da vida, a chuva, eu falei de graça, não, não, então entendam desgraça, é daqui a pouco pode contabilizar os mortos soterrados, chamar o resgate, que Deus ilumine meu barraco e meus irmãos, isso não mudou, ainda vejo as gambiarras, já, já, tem um curto circuito e mais de 200 barracos em chamas, uma pá de família desabrigada e muito churrasco de carne humana, nesse tipo de churrasco o urubu que cola tem terno e gravata, Seu João tá lavando de novo a frente do boteco, teve outra chacina ontem uns 5 foram pro saco dessa vez, os moleque tão normal também, cheirando benzina, cola, fumando cigarro, maconha, crack, chutando uma bola véia, tretando, correndo atrás dos pipa, é, ainda o lazer da gente se resume nisso, ainda tem uma pá de mina grávida sem saber quem é o pai, umas que nem bem largaram a boneca vendendo o corpo por motivos diversos e felizmente ainda tem pessoas acordando cedo, estudando, enfim, tentando fugir da Detenção Sem Muro.
Será que eu tô ficando louco, ou será que eu tô na nóia, pouco provável, eu fumei crack já faz 3 dias, tô muito confuso, o que será que mudou? Os pontos de ônibus tão cheios, uns esperando o ônibus que não vem, outros se esmagando na lotação com capacidade pra 16 com mais de 30, meus parentes, meus manos, tão indo pra cadeia ou pro cemitério, as crianças continuam estudando sentadas no chão, tem arma, droga na sala de aula e a maioria ainda vai lá só pra comer a merenda, os gambé tão invadindo os barracos, matando criança, batendo na cara de trabalhador, essa palavra aqui ainda é sinônimo de embriagues, copo cheio, dispensa vazia, de cansaço, de muitos não no ouvido, ou pelo endereço, ou pela cor, ou pelo, currículo, sabe quando eu vou aprender falar inglês e aprender mexer em computador, o dia que eu sequestrar um americano técnico em informática, chega ser irônico no Brasil trabalhador é sinônimo de desempregado.
Bom, os crentes tão entregando folheto, jornalzinho, tentando mais fiéis pro rebanho do pastor, tentando convencer a favela da 2º vinda, tudo normal, tem dia que dá mal bronca deles, não tenho saco pra maluco






pesando no meu ouvido, só que as vezes eu fico olhando, só filmando, a fé, a alegria, a esperança deles, confesso, tem horas que dá vontade de apelar pra bíblia.
A trilha sonora do inferno continua a mesma, muito rap, alguns cantando a real sem tremer, sem pagar, cumprindo a missão e uma pá de cusão criticando eles. Vou dizer, mulher fofoqueira é feio, agora barbado tipo lavadeira, é embaçado, quer dizer, lavadeira é a tiazinha honrada, suando na beira do tanque, peço desculpa, a postura do zé grupinho é de puta, fica na posição que for mais conveniente pra ganhar ibope e dinheiro.
O helicóptero do político ainda não pousou aqui, o Rous Royce presidencial ainda não trombou nenhuma lombada daqui, uma rua de terra se quer, os traficantes tão de moto, carro importado, os corinthianos tão matando os palmeirenses, os palmeirenses os corinthianos, enquanto o jogador tá no cassino no Uruguai tomando vinho de 12 mil a garrafa, a camisa da seleção continua custando 130 reais deixando claro que só boy pode comemorar o penta, ser patriota, mais até aí , foda-se que favelado gosta dessa porra de país, racista, filho da puta que só considera gente que tem dinheiro, resumindo acho que é isso, nada mudou.
Será que talvez os caras desistiram daquela, fita da empresa, vou ver se foi isso, tomara que seja, eu nunca falo nada, mais é foda, eu não queria meu povo com arma, mais vai falar pra você vê, vai logo escutar, e aí truta cê vai dar sustento pros meus menor, vai pagar minhas contas, não vai né, então vai tomar no cú, não se mete...
- Oi Dona Maria, cadê seu filho?
- Ó menino saíram aí com 2 carros, um monte de homi mau encarado, levaram os fuzil, acho que foram apronta de novo, já falei pra quele sem vergonha, já cansei de ser revistada por filho da puta, em dia de visita, já falei pra ele parar com a vida desgraçada, da última vez que ele tava preso, transfiriram ele pro interior, eu tinha que sair de casa 3 horas da manhã, viajava 4 horas ou mais, gastava uns 100 conto para o jumbo e essa é recompensa do meu sacrifício.
- É foda Dona Maria, que eu vou dizer? Nessas horas o silêncio diz tudo, um beijo pra Sra., tchau.
- Vai com Deus menino, manda um abraço pra tua mãe, manda ela aparecer.
- Mando sim, tchau.
Agora fudeu, tá tudo normal, todo mundo igual, mais eu ainda me sinto estranho, porra então o bagulho é comigo, bom vou olhar no espelho do carro, a barba não é, os dentes eu não esqueci de escovar, os olhos continuam miopes, sem lente de contato, sem óculos, favelado não tem direito nem de enxergar direito, o peso não pode ter mudado desde ontem, eu me pesei, era 7:00 horas da manhã de ontem na farmácia e até agora não comi nada, a estatura não pode ser, pra cescer a gente tem que ingerir leite, carne, feijão e não é meu caso, absolutamente não.
Falando em espelho de carro, que Audi muito louco só o Robocop deve dá pra ganhar uns 500 conto, se for o que tem MD então, ou aquele de 2 CD´s, tô feito, a fita é o seguinte vou esperar o dono de campana lá no bote, vou armado de faca memo, peraí, esperar o dono, campana, faca, boy, caralho é isso, infelizmente é isso mesmo, descobri o que mudou, a mudança tá no meu coração, ele foi petrificado, arrancaram o amor e injetaram o ódio, agora o sangue que ele bombeia pro meu cérebro, vem contaminado por um sentimento “vingança” por tudo de ruim que eu vivo e vejo.
É boy parabéns, você venceu, agora eu sou mais um no trilho do vale da sombra.

Eduardo, autor e intérprete dos álbuns Juventude de Atitude, Estamos de Luto, Versos Sangrentos, A Marcha Fúnebre Prossegue e Direto do Campo de Extermínio e outras coletâneas.

Os Inimigos Não Levam Flores (Ferréz)

Os Inimigos não levam flores


Tá o maior calor, tô ate lembrando quando trabalhava no padrão de lanches americanos que esses playboys consomem lá do Shopping Ibirapuera, burguesia filha da puta, não podia nem encostar a mão nos Pães, contaminava é o que diziam, e eu cuspia a todo momento em tudo, o maluco ficava moscando, escolhendo o lanche, beijando a mina dele, e eu cuspindo no Hambúrguer, passando o queijo geladinho na testa antes de colocar na chapa,até na merda do milk shake eu cuspi, era satisfação maloqueira garantida.
Porra! Tô viajando, tenho que tá concentrado, quem tá subindo? Porra num conheço aquele carro, é sempre assim nessas horas tem que ser ligeiro, a porra dos malote tá dividido, falta contar o dinheiro, num conheço essa porra de quadrilha direito, tem mano que num confio nem fudendo, minha mãe disse que hoje ia ser foda o dia, parece aviso, tô no maior calor, vou ligar o Tatá pra vê se ele tá chegando, se pá e o único que conheço de verdade nessa porra toda, mas das trairagem nem Jesus escapou, com certeza nem Deus confia nos amigos, se tiver um, nunca ouvi falar em amigo de Deus.
Porra tô viajando de novo, essa porra desse Tatá num atende, viado do caralho.
Atendeu, até que enfim.
- E ai mano cadê os divide?
- Tá foda truta, sumil 10 .
- Dez o que, dez real?
- Não! Fudeu tudo, sumil 10 por cento da fita.
- E agora porra?
- Agora alguém vai ficar sem.
- E quem perdeu essa merda?
- Diz que foi o Igordão.
- Me dá o numero dele.
- Prá que?
- Pra que caralho? é prá ele aparecer com a porra do malote!
- Se liga mano, o maluco e mó nervoso, se ameaçar tem que fazer.
- Num vou ameaçar, me dá a porra do número?
- Anota ai.
- Certo, agora vou desligar, depois nois se tromba.
Esse viado do Igordão ta pensando o que? Tem dez mano, vai sumi logo 10 por cento, isso já ta virando coisa de Pai Thomaz, mais comigo não nega, casa de caboclo comigo da cova rasa.
- Quem é?
- sou eu o Pipo!
- Fala!
- Fala você, você perdeu essa porra como?
- Ai truta! Num Põe marra não, que num tem troxa.
- Num tem trouxa é aqui, só porque é cadeiro, puxou de trouxa que é.
- Trouxa, tu vai ver quando a gente se trombar!
- Nós num vai se tromba igordão, sabe porque?
- Porque loqui?
- Porque ou você aparece com os 10 por cento ou some com a porra toda.
- E quem vai fazer eu sumir?
- eu mesmo viado do caralho.
- vai se foder!


Filho da puta, desligou na cara dura, tá pensando o quê? Ele vai ter que dar conta dessa porra, e cadê os outros maluco, tá estranho, vou embicar o carro do outro lado da rua.
Porra aqueles manos de moto já passaram aqui duas vezes, se passa de novo eu pipoco, num vou nem pensar, foda-se.
Mas que merda, eu devia ter ficado vendendo lanche mesmo, minhas mãos já tão molhada, cadê os viados, se o malote tá aqui eles tem que ligar pra debater a divisão, porra ta embaçado e se um rodou fudeu todo mundo, caralho, vou ligar pro Ditão.
- Quem é?
- Sou eu ditão.
- Fala!
- Cadê as conferência?
- Num tem mais conferência porra nenhuma.
- Mas o que tá pegando?
- Num tá pegando, já pegaram.
- Pegaram o que?
- Sua parte.
- Minha parte? Cê tá loco, minha parte tá aqui comigo, e mais três partes também.
- Não por muito tempo.
- Porque?
- Sei lá.
- Sei lá o que? Pelo amor de Deus.
- Deixa Deus fora dessas treta.
- Mas o que tá pegando?
- Nada já falei.
- Eu vou sumir então, vou sumir com tudo que tá no carro.
- Vai não.
- Vou não porque?
- Porque já te acharam.
- Acharam nada porra! Tô olhando num tem ninguém.
- Se que pensa, já mandaram te avisar.
- Avisar o quê?
- Que os inimigos não levam flores.

Ferréz.

Chão (Alan Da Rosa)

CHÃO

Desceu pro pé da roda e se benzeu.
Vislumbrou a praça aberta, arroxeando no crepúsculo. Os arrepios do Gunga, do Médio e do Viola ganhavam o vento. Pediu proteção, pra si e pro seu camará. Quem ia com ele pra conversa era um cabra todo de branco.
Saíram de AÚ. Angoleiro, se mantinha próximo à Mãe-Terra, devagar e ligeiro no seu movimento, a guarda constante da cabeça. Floreava e escapava do rabo-de-arraia, já lançando uma chapa como pergunta e se esquivando da ponteira que vinha como resposta. Os olhos do que não era parceiro, era inimigo, descobria agora, brasavam.
ÊÊÊ O FACÃO BATEU EMBAIXO A BANANEIRA CAIU ÊÊÊ
O corpo, o pensar: um só eixo de concentração. Duas armadas já teriam entrado se a atenção não fosse plena. Um cabeça branca lamentava, gargalhava, comandava a função. Um êxtase eletrificou o jogador. Histórias de quilombos, amores... relampeavam nas gargantas.
Num relance, o vulto de uma queixada passou soprando sua orelha: pelos assovios da roda, lembrou que estava só. Era ele e sua mandinga.
QUANDO EU VENHO DE ARUANDÁÁ, NÃO VENHO SÓ, QUANDO VENHO DE ARUANDÊ, NÃO VENHO SÓ.
O pessoal rimava o banzo na melodia. O jogo ia tomando grau. Ele sinalizou pra Chamada. Aquele bruto não sorria, era duro, mas parecia antever seus movimentos. Veio num turbilhão o ensino do Mestre, sempre humilde e exigente: “- É necessidade. Amizade e maldade. Na rua, num confia nem na mãe.”. Saíram colados.Evitou a bica nas costelas, ficando pequenininho. Tava treinado, tinha escorregado por baixo de duas catracas.
Não sabia que o adversário havia sido desprezado uma hora antes, no mesmo momento que ele negociava com o cobrador do busão. Que havia tomado uma boca-de-calça, mesmo sendo treinel: passado carão. Que nas artérias ocultas sob a pele suada e rosada, espocava a ânsia de equilibrar o dia, sobrasse pra qualquer matuto que chegasse.
O São Bento Grande anunciava um espírito, ainda intraduzível, mas já pressentido.
PIMENTA MADURA É QUE DÁ SEMENTE, QUE DÁ SEMENTE, QUE DÁ SEMENTE.
Seguia na dança moleca, sorriso malaco e olhar de assombrado. Rasteiras, cabeçadas: o jogo transbordava tensão. Recordou rodas em que angoleiros haviam derrubado brucutus que exibiam altos cordões. O branco da outra calça estava barrento na bunda. O restante, impecável.Veio à mente o dia anterior, o uniforme da enfermeira, suas luvas plásticas, a visita à mãe no P.S., o esforço da guerreira em expressar sua esperança e esconder a dor, que a contorcia vez em quando naquela cama encarreirada no corredor.Lembrou quando ela pedia uma tesoura, uma colher, pra pôr na batata da perna, pra matar a cãibra que repuxava as varizes, quando ele esfregava álcool nas suas pernas e ela gemia Deus do lado do balaio vazio de chocolates, que não foram vendidos mas apreendidos pelos agentes do trem.
A memória nem lhe havia dado força, a pena por se desligar um instante foi a calcanheira nas têmporas. Antes do crânio machucar o chão, ainda ouviu a arrelia dos capoeiras, na roda do mundo.

Os olhos de Javair (Dona Laura)

OS OLHOS DE JAVAIR

Não há dia, no andar pachorrento de tempo, na mente obscura a rememoração:
- Anos ou séculos?
Sei que me arrasto amparado a um muro espinheiro e infindo, chego a sentir os malditos cravar em minhas mãos, isto é, o que restou delas.
Perdi minhas carnes e até meus olhos azuis, dos quais eu tanto me orgulhava, fui personagem de uma cena maquiavélica, devorada por meu próprio orgulho.
Agora procuro a passagem enrustida no meio da galhadura para poder voltar.
Meu nome é Javair, filho único de um modesto casal, quando cheguei, minha mãe já beirava os 30 anos, tive uma infância sem carências.
Na adolescência, senti a dor da primeira perda, a morte de meu pai abriu um rasgo profundo em nosso lar que impiedosamente sugou as imagens coloridas de minha infância.
Mãe assoberbou-se de trabalho, para não pensar, e eu, enquanto pisava um extenso tapete de lagrimas, a própria vida abria com veemência as cortinas para a liberdade, e eu, jovem curioso, deparando-se com a nova brecha, infiltrei-me.
Vida nova, amigos novos, pessoas inteligentes, os colegas elogiavam minha perspicácia, eu era feliz, as garotas preocupavam-se com meu físico, ou com o magnetismo dos meus olhos, carinho eu tinha em abundancia.
Todas as noites íamos às boates, onde corria muito fumo e bebida, fazíamos viagens fantásticas. Por Rute, uma prima, cheguei a sentir algo, mas dispensei-a logo, era pegajosa demais, eu era amarrado na coca já aos 20 anos.
Com minha mãe não havia dialogo, ela parecia uma cartunista, dizia sempre as mesmas frases:
- Javair, meu filho, cuida do teu futuro, se não queres estudar, procura um emprego, afasta-se desta turma, lembra do fulano... – e ali ficava lembrando o fim de algum idiota.
E, em matéria de emprego, ela dava um péssimo exemplo, dava um duro danado numa lanchonete de terceira categoria, eu sentia vergonha dela.
Ela fazia dez horas corridas e ganhava uma bagatela, que não cobria um terço das minhas despesas, era uma incompetente.
Certo dia, necessitado, fui ate aquela espelunca e pedi:
- Manda uma grana aí, ô coroa.
Respondeu-me complacente:
- Eu não tenho dinheiro, meu filhinho.
Esta historia de filhinho irritou-me, cerrei os punhos e fui para cima dela:
- Filhinho uma pinóia, abre esta merda desta caixa.
- Não roubarei, nem mesmo por você, meu filho.
Eu a esbofeteei, o povo aglomerou-se, eu falei:
- Isso é assunto de família, não se metam.
Acuada, ela abriu o caixa e, enquanto eu pegava o dinheiro, pegou o revolver do patrão e atirou, eu cai numa poça de sangue e ela a olhar, esquecida de que eu era Javair, seu único filho.
Rostos estranhos desfilavam ao meu redor, tive alucinações, ate vi meu pai, ele amparava-me em seus braços.
Quando acordei, estava num lugar esquisito, onde o tempo não andava, a vida era em câmera lenta, o lugar era uma espécie de enfermaria, tinha o teto e as paredes em azul-claro, havia leitos e estavam ocupados, mas ali ninguém falava minha língua.
Sai para o corredor, cruzei com muitas pessoas uniformizadas, mas não tentaram me deter, atravessei a rua, sentei-me numa pracinha simpática e fiquei a observar o vilarejo, onde todos pareciam dormir.
As casas eram todas pequenas, de cores algodoadas, chocavam-se com o colorido das flores, um caramanchão de trepadeiras espinhosas escondia o muro da divisa. Eu me perguntava:
- Será que eu morri e estou no inferno? Se for o céu, é o subsolo, mesmo que seja, eu não vou ficar neste lugar miserável.
A este pensamento, aprofundaram-se as dores no meu abdômen e minhas feridas sangraram. Um homem aguava as plantas, pedi água, ele deu-me e também uma fruta.
A fruta era de cor verde, saborosa e devia ser nutritiva, pois logo eu estava restabelecido, andando nas ruas de chão batido, pensava na minha pobre vida, aquele lugar era misterioso, até os gansos andavam pelo meio das hortaliças sem bicá-las.
Uma casa chamou minha atenção. Por ser diferente das outras, deduzi que fosse uma igreja, adentrando o local beneficiei-me com o ar fresco e o ambiente confortável, havia uma parte saliente onde ficava o púlpito, atrás dele corriam umas cortinas com estampas de flores, a Bíblia aberta, as cadeiras dispostas lado a lado, não deixavam duvidas: era uma casa de orações. Um ancião chegou ao púlpito e todos o aplaudiram, voz pausada, olhar profundo, tudo ótimo.
De repente, me senti um banana no meio daquela gente vetusta, subi numa cadeira e gritei:
- Se tiver algum idiota aqui que fale minha língua, diga-me como saio deste manicômio!
A piedade estampada nos rostos mortuosos foi a reposta.
Abandonei o recinto, voltei para o caramanchão reclamando.
- Quero sair deste lugar micha, onde está o cigarro, as mulheres, a bebida?
Afastei os galhos das flores, que chegavam até o chão, infiltrei-me por baixo, as plantas espinhosas eram só fachada, uma espécie de camuflagem do muro.
Espiei para o outro lado do muro, havia um clube onde os namorados, agarradinhos, passeavam à beira de uma piscina, gurias de corpos esculturais, usando minúsculos biquínis, deliciavam-se com drinques coloridos, protegidas por guarda-sóis multicores.
A dois passos de mim esta o paraíso e eu aqui como morto-vivo. Gritei para o homem da água:
- Hei, quero sair daqui!
Olhou-me condoído e jogou uma chave, mostrando-me a seguir a passagem, eu fui.
Já do outro lado, eu disse em voz alta:
- Enfim, a terra prometida, meu éden.
O clima era diferente, o vento se fazia preguiçoso, mal mexia com os cachos da loira de olhos incandescentes. Cheguei na beira da piscina de águas efervescentes, olhei firme para cada uma das mulheres para que sentissem a força do meu olhar, joguei-me. As borbulhas vinham de um ácido, creio, perdi meus olhos, minha vaidade, minhas carnes caem aos poucos. Foi difícil encontrar o muro, mas eu preciso daquela água, preciso daquela fruta.



Dona Laura

Toda brisa tem o seu dia de ventania (alessandro Buzo)

Toda brisa tem o seu dia de ventania (Alessandro Buzo)
O Itaim Paulista dorme. É noite no último bairro da Zona Leste de São Paulo. Assim que o sol nascer será mais uma quinta feira,dia de trabalho. Se for verdade que o paulistano é viciado em trabalho, André é um destes maníacos. Que acredita na força do trabalho, que acredita estar no caminho certo, acredita que um dia a vida dura vai melhorar, mas até chegar esse dia não se cansa de trabalhar. Pula da cama as cindo da madrugada todo dia e só volta da lida com a lua no céu. Nem para pagar as contas o dinheiro dá, então hora extra para completar. Deus abençoa não ter que pagar aluguel, mora com mulher e filho nos fundos da casa da mãe, a pequena casa de dois cômodos. Não falta amor e as necessidades e dificuldades são encaradas de frente. André ultimamente anda meio puto da vida com uma porrada de coisa que vê no dia a dia. Não entende como tem tanto pobre num país tão rico. Como tantos políticos são corruptos, só pensam em roubar. Como tantas bandas boas ralam no subúrbio e só artista queridinho da mídia vão repentinamente nos programas. Outra coisa que faz André perder o sono é a respeito com que o seu patrão trata ele e seus amigos de trabalho. O coreano trata a todos aos berros, nunca deve ter ouvido falar em respeitar para ser respeitado. André acha que até que até pelo fato do patrão ser estrangeiro, deveria ter educação com seus funcionários. Todos brasileiros. Todos baianos, pernambucanos, mineiros, paulistanos, todos filhos dessa terra amada. Mas a qualquer atraso de um funcionário o patrão já esculachava no meio da loja, na frente de qualquer um, aos gritos. Outro fato que enchia André de indignação era o coreano falando mal do Brasil o tempo todo. Reclama daqui, critica dali, mas embora que é bom, nem pensar. Também no seu país de origem dificilmente ele teria uma mansão como aqui, casa na praia e carro de luxo que por segurança ele mandou blindar. Se já não bastasse o mau trato do patrão, à tarde que chegava era a patroa e os três filhos. Os moleques mexem com um e outro, destratam o cortador, incomodam as vendedoras e ninguém fala nada, pela frente é claro, porque por trás falam os bichos dos três monstrinhos, digo, filhinhos do patrão. André é estoquista, no meio da bagunça organizada do estoque ele sabe onde está tudo, grita lá de baixo que o André manda. Os cortes certos, as peças corretas. Há dois anos André presta serviços na loja e aguarda o prometido aumento salarial que o coreano lhe prometera se ele tiver um pouco mais de paciência. Quinta, 03 de maio de 2001, André pula da cama ao som do despertador, os ponteiros marcam cinco horas da manhã, quase que automaticamente ele toma banho, prepara uma mamadeira para quando o filho acordar. Um beijo na esposa, que lhe deseja um bom dia, ele deseja o mesmo e parte. O sol ainda não está no céu, a escuridão ainda prevalece, mas como milhares de trabalhadores ele nem tomou café da manhã e na bolsa já carrega a marmita, já pensa no almoço antes mesmo do café. André acha que toda empresa deveria dar tíquete refeição. Na bolsa, também, vai dois livros, um que ele está acabando de ler e outro que ele não vê a hora de começar. Apesar do salário baixo e de todas as dificuldades, sempre que sobra algum, André passa num sebo e adquire um livro. Seu passatempo predileto nas conduções é ler, do Itaim Pta. Ao Brás são quarenta minutos diários de leitura na ida e outros quarentas na volta. Isso quando amigos não chamam para jogar uma sueca, o jogo oficial da linha variant dos trens da CPTM (Companhia Municipal de Trens Metropolitanos). Seis horas e André vê um tumulto na frente da estação do Itaim, os trens, para variar, estão com problemas, segundo um cartaz, um trem tinha descarrilado e os trens circulavam com atraso e maiores intervalos nas estações. Mesmo não estando em condições de prestar um bom atendimento ao usuário a CPTM não abre mão de cobrar a passagem. Alguns vão para o ponto de ônibus. Como de ônibus era certeza de atraso, André apostou no trem e embarcou, o trem que ele pegou ficou quinze a vinte minutos sem sair do lugar, neste tempo toda a composição superlotou, o animo para ler o livro que estava na bolsa fora embora, não dá mais nem para pegar a bolsa. A viagem de quarenta minutos chega, neste dia, a uma hora e meia. André no meio da viagem se pergunta porque a CPTM não utiliza os trens de 12 vagões, já que estão com problemas no percurso, mas parece que de propósito só circula trem de 6 vagões, como se o pobre merecesse sofrer. A pessoa sente-se numa lata de sardinha. Cansado, desanimado, amassado e humilhado, André desembarca no Brás, as oito da manhã. Nem o cansaço, nem a irritação pela péssima viagem fazem André esquecer o coreano. Ele caminha rapidamente, passa as catracas, desvia dos que andam vagarosamente, desviadas pessoas paradas vendendo passe em frente à estação, desvia das inúmeras barracas dos camelôs, cruza como um raio o Largo da Concórdia e as oito e dez entra na loja, que fica na Rua Maria Marcolina. O coreano olha automaticamente para o relógio na parede, quarenta minutos de atraso. O patrão dispara uma metralhadora giratória: - Atrasado de novo André, pelo amor de Deus! Será que eu falo grego, não vou permitir atrasos, acorde mais cedo, mude de condução, faça o que você quiser, mas chegue no horário. Vai dizer que foi o trem? De novo o trem? Ou sua vó morreu de novo? O coreano não parava de falar, nem se importava com a presença de três fregueses, nem muito menos com os demais funcionários que olhavam para André, que estava ali parado, só ouvindo. Todos esperando suas explicações. Surpreendentemente André gritou: - Cheeegaaa...!!! O queixo do coreano quase caiu, seus olhos se arregalaram, ele não pensou duas vezes e disse que André estava despedido. André riu, começou a rir muito, quase chorou de tanto rir. Depois falou: - Antes de ir embora, gostaria de lhe falar. Subiu no balcão e pegou o relógio na parede, voltou as horas para cinco da manhã, tacou o relógio no chão de modo que ele quebrou com os ponteiros marcando cinco horas. André prosseguiu. Frente a frente com o patrão, que estava sem reação, começou a falar: - Agora você vai ouvir tudo que eu passei das cinco da manhã até agora... O coreano tentava se safar e André o segurava pelo colarinho. A platéia aumentou e todos ouviram as explicações de André, o coreano não falou mais uma palavra. Quando André terminou, o patrão falou: - Esquece isso André e vai trabalhar. - Trabalhar? Eu me demito, ouviu, eu não serei nunca humilhado por você, eu me demito. Me demito... M E D E M I T O .... Então ele virou as costa e partiu, pegou o trem, tirou o livro que lia, parece que só os textos de João Antonio o compreendem, ele chega em casa e mesmo desempregado é recebido com um sorriso pela mulher e com festa pelo
filho.

Epidemia (Ridson Du Gueto)

EPIDEMIA

Parte I

Minha palavra é o incêndio que se alastra.
É conflagra e flagra.
Abre as chagas.
Oxigênio não se acaba.

Chama alimentada pelo ódio do inimigo.
Sistema de ópio que deixa o povo dividido.
Os prédios imponentes e a favela submissa
A grande obra prima do sistema capitalista.

Somente com muitos muros sem constrói este sistema.
Burguesia em quarentena, refém da própria doença.
Desperdício, luxuria, status, ostentação.
Centros de poder, focos de infecção

O que corre nas veias do ser opressor.
É a prepotência de quem se julga superior.
Que se transforma em ódio e irradia a epidemia.
A burguesia sofre de guetofobia.

E nem a medicina encontrou o antídoto.
Não ha vacina pra pobreza de espírito.
Mal galopante, agudo, crônico.
O preconceito é um sinal, o terminal é o pânico.

Sua febre ferve, cólera transparente.
Tem só nojo de pobre ou medo da brava gente?
Sua cobiça típica consumista gera o medo.
Constrói o condomínio pra viver longe do gueto

Aumenta a desigualdade, mas não convive com ela.
Provoca o trauma, mas não responde pela seqüela.
Não mantém desassistidos sem empregos, longe dos livros.
Sem condições, identidade, mas ainda estamos vivos.

Sua meta é impedir que venha a surgir.
Em pleno século XXI o novo ZUMBI
Somos todos reféns de um assalto que nunca acaba.
Somos a margem de erro do plano senzala.

É a saga do povo que agora se repete.
Onde houver injustiça sempre haverá um rebelde.
Eles têm medo de nós porque somos maioria.
A burguesia sofre de guetofobia.


Parte II

Maioria, comunidade, imunidade natural.
A epidemia atinge só sua classe social.
Doença terminal, resultado, síndrome.
Povo pobre, vantagem: humilde índole.

Desta infecção eu, Dugueto, não sou vítima
De classe média pra cima, todo aquele que discrimina.
Cientistas da causa, reféns da conseqüência.
A playboyzada e a sua doença e tudo o que ela representa.

Pior que a histeria anticomunista.
Pior que a polícia racista na revista.
Bem maior que o medo do seqüestro.
Ignorância, violência, intolerância diante do protesto.

Mais forte que a vontade de continuar dominado.
Regendo o controle eterno, explorando, escravizando.
Mais forte que a inveja de nos ver de pé.
Povo: cultura da resistência e da fé.

A trinca na corrente, a bala na agulha.
Igual a uma em seis na roleta-russa.
O rastilho de pólvora, a vazamento de gás.
Eu sou a rejeição à tua falsa paz.

Eu sou a podridão que você abomina.
Seu filho viciado em cocaína.
Represento o detento dando tempo ao tempo.
Planejando o retorno, lendo, escrevendo.

O furo no bloqueio da sua segurança.
A fuga bem-sucedida., no horizonte e esperança.
A amor que vence a droga.
Sobrevivente das mais duras provas.

Eu sou o parto com risco de vida.
Criança subnutrida contraria as estatísticas.
O livro encontrado no lixo.
Quanto teria perdido se não o tivesse lido.

Eu sou o eco da menina chorando.
A denúncia da sua corrupção te atormentando.
Minha revolta tem a idade deste assalto.
E eu sei que alguém está lucrando com este holocausto.

Vidas convertidas em lucro para o seu bolso.
Sinta o gosto do nosso sangue lhe amargando o caro almoço.
É a saga do povo que agora se repete.
Onde houve injustiça sempre haverá um rebelde.
Eles têm medo de nós porque somos maioria.
A burguesia sofre de guetofobia.



Parte III

“Jornal Nacional”, a chamada anuncia a notícia:
Manifestantes entram em confronto com a polícia.
Eles tinham faixas e palavras de ordem.
Contra gás lacrimogêneo, cacetetes, tropas de choque.

Só que a câmara filmou só a revolta e a reação.
De quem no desespero atira pedra em vão.
E no bloco seguinte o que se viu, ouviu:
“Pesquisa prova: desemprego diminui no Brasil.”

Guetofobia: o poder intimida.
Chacinas na periferia cometidas pela polícia.
Manifestações pacíficas reprimidas na Paulista.
Difamações, mentiras pela tevê transmitidas.

Terrorismo: crime considerado hediondo.
Ato válido somente quando atinge o povo.
Promotor burguês censura a verdade.
Porque a função da televisão é a produção de fugas da realidade.

É do meu olhar que você tem medo.
Bonito terno, onde vive se escondendo.
Eu vi você erguer o vidro, acelerando.
Quase atropela o moleque trabalhando.

A pressão sobe, o coração, acelera.
Alergia a pobre, pavor da favela.
Pesadelos, pânicos, inquietação, insônia.
Guetofobia: estes são os teus sintomas.

Ignoram as crianças viciadas e marginais.
Depois vão pras ruas em passeatas. “BASTA, EU QUERO PAZ.”
Paz morar longe de sem-teto.
Proteger o domínio no condomínio sem favela perto.

Que tem como herói um Coronel Ubiratan.
Aprecia confortável nosso diário Vietnã.
Cães acostumados a apontar se farejam medo.
Entram em desespero, quando sentem o próprio cheiro.

Burguesia aplaude nossa calamidade.
São contra os direitos humanos, porque não têm humanidade.
Sua tolerância zero, limpeza social, justiça.
Sob a luz no meu verso, enxergo suas feições nazistas.

Da destruição de Palmares à ditadura militar.
Massacre do Carandiru, Eldorado dos Carajás.
O dinheiro comanda a execução sumária.
Esquadrões da morte, chacina da Candelária.

Sua idéia de paz é diferente da minha.
Sua paz inclui a escravidão da minha família.
Com o meu silencia, meu consentimento.
Meu confinamento dentro de um gueto.

A paz que eu não aceito e rejeito é a paz dos guetos.
A paz capaz de te obrigar a ignorar o olhar de preconceito.
Aquela paz imposta por viaturas da ROTA.
Paz de escravos, paz de gente morta.

Mansões, reuniões, festas, drinks, caviar.
E na favela, nos barracos, algo começa a mudar.
O filho mostra à mãe o que ela nunca percebeu.
Porque nunca teve a oportunidade, não leu, não aprendeu,

A guerra prolifera, o levante da favela.
Não é uma ameaça, é uma promessa.
Promessa de terror, horror, incêndio.
Por isso, playboy, tenha medo.

É a saga do povo que agora se repete.
Onde houver injustiça sempre haverá um rebelde.
Eles têm medo de nós porque somos a maioria.
A burguesia sofre de guetofobia.

Extremamente, centro de terapia intensiva.
Tratamento de choque contra guetofobia.
Bisturi da cirurgia sem anestesia.
Extirpa o câncer da sua covardia, burguesia.




Ridson

Guilhotina de Pelica (Erton Moraes)

Guilhotina de Pelica

Uma cabeça que parece um tufão, um tornado
Um vulcão em erupção
Uma cabeça que esquece os documentos
Uma cabeça Inteligente e ao mesmo tempo demente
Uma cabeça cheia de absurdos
Uma cabeça careta
Uma cabeça com pimenta malagueta
Uma cabeça bola que rola na sarjeta
Uma cabeça dividida
Entre o pão e a bebida
Uma cabeça de bicho cheia de amor e lixo
Uma cabeça reciclada entre o tudo e o nada
Uma cabeça sonhadora que parte voa
E outra parte na masmorra
Uma cabeça cheia de memórias de fotos e fatos
Uma cabeça de negro, de branco, de mulato
Uma cabeça feliz que sofre, deseja e desafia o dia-a-dia
Uma cabeça de gênio, genioso
Uma parte carinhosa, outra parte asquerosa
Uma cabeça maliciosa e ao mesmo tempo sem malicia
Uma cabeça urbana, freudiana, pernambucana
Uma cabeça antenada, com as culturas das estradas
Uma cabeça que esta sendo leiloada:
Vendo o que penso, penso porque é preciso
Pensar é meu oficio
Uma cabeça amiga que ao mesmo tempo briga
Em parte como todos, com sonhos e pesadelos
Enfim, uma cabeça que não pode ser modelo.

Erton Moraes

O grande Assalto (Ferréz)

O Grande Assalto


Avenida Santo Amaro. Às 13 h.

Um homem mal vestido para em frente a uma concessionária de automóveis fechada e nota as bolas promocionais amarradas à porta.

Um policial desce da viatura, olha para todos os lados e observa um suspeito parado em frente a uma concessionária. O suspeito está mal vestido e descalço.

Uma senhora sentada no banco do ônibus que pára na avenida para pegar passageiros comenta com a moça sentada ao seu lado que tem um mendigo todo sujo parado em frente a uma loja de automóveis.

Um senhor passa por um homem todo sujo. segura a carteira e começa a andar apressado. Logo que nota a viatura estacionada mais à frente, se sente seguro, amenizando os passos.

Um jovem tenta desviar de trás do ônibus parado, os policias que ele vê logo à frente lhe trazem desconforto, pais seu carro está repleto de drogas que serão comercializadas na faculdade onde estuda.

O homem malvestido resolve agir, dá três passos à frente, levanta as mãos e agarra duas bolas promocionais; faz a conta rapidamente e se sente realizado, quando pensa que ao vender as bolas comprará algo para beber.

Uma moça alertada pela senhora ao seu lado no ônibus, chama a atenção de vários passageiros para o homem que, segundo ela, é um mendigo, e diz alto que ele acabou de roubar algo na concessionária.

Um jovem com o carro cheio de drogas para vender na sua faculdade nota o homem correndo com duas bolas e dá ré no carro ao ver os policiais vindo em sua direção.

Um policial alcança o homem mal vestido e bate com o cabo do revólver em sua cabeça várias vezes; o homem tido como mendigo pelos passageiros de um ônibus em frente cai e as bolas rolam pelo asfalto.

Um motorista que dirige na mesma linha há oito anos tenta ficar com o ônibus parado para ver os policiais darem chutes e socos em um homem malvestido que está caído na calçada, mas o trânsito está livre e ele avança passando por cima e estourando duas bolas promocionais.

Ferréz é autor de Capão Pecado, Manual Prático do ódio, Amanhecer esmeralda, e Ninguém é inocente em São Paulo.
www.ferrez.com.br

Faveláfrica (Gato Preto)

FAVELÁFRICA



Certa noite ouvi gritos, estridente e dolorosos
Os gritos eram de tamanha dor, tristeza e desespero
Que me aproximei, e perguntei aquela triste e bela mulher negra, o que havia

Ela como louca, alucinada gritava
Lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele
Me aproximei e perguntei ele quem? Ele quem?
Ela desesperada e cheia de dor, e ira, respondia

Ele o cheio de maldade, pervercidade, de atos desordeiro
Cruelmente arrastando os meus filhos, para um longíquo cativeiro
Sem amor, só rancor, desonrando meus herdeiros
Destrói a mim, a meus filhos, simplesmente pelo dinheiro

E embravecida e chorosa, enconsolavelmente ela gritava
Lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele
E novamente, olhei para ela e perguntei
Ele quem? Ele quem? Ele quem? Ele quem?
Melancolicamente, arduamente, respondeu

O agressor genocida, destruidor afanador de vidas
Levando meus filhos inocentes por esses mares em tristes correntes
Correntes, amordaças, grilhões, cachote, pelourinho, porões,
Chicote, torturas, chibatas, tronco, casa grande senzala

Parasitas, sangue-sugas, amantes da dor da tortura
Sem amor, só rancor sem conduta
E ela cheia de sentimentos penosos, incansavelmente ela gritava
Lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele

E eu tornei a perguntar, ele quem? Ele quem?
E a mãe África triste respondeu
O insano desumano, profano tirano
O hospedeiro, besta, desordeiro
O causador da dor, condutor, chofer do pesadelo
Assassino, infame, bandoleiro
Sanguinário mercenário do estrangeiro
Abutre, chacal, carniceiro
Ele é! O NAVIO NEGREIRO

Reflito e sinto pena, daquela preta ingênua
Que aceita ser chamada, de multa ou morena
Valença, valença, valei-me meu Deus, de tanta inconsciência
Ela se esqueceu, do tapa na cara, a dor da chibata

O chicote que marca, o tronco a senzala
Na boca amordassa, da preta Anastácia
Chefe Ganga Zumba, Zumbi e Dandara
O racismo não passa, é tudo fachada
É jogada armada
O MASSACRE NÃO PÁRA

É porta na cara, da nossa raça
O corpo na vala, a rota que mata, polícia que passa
Mais um preto arrasta, o capitão lá da mata
Do branco a risada, racista piada

É mesmo uma praga, por toda massa?
O racismo se espalha, o preconceito exala
Quinhentos se passa, de mentiras safadas
Acredita quem quer, em contos de fadas

Pra mim isso basta, tô pegando minhas facas
Minha língua é navalha, palavra que rasga
E fogo que alastra, deflagra e conflagra
Mas não quero só fala, eu parto pra prática

Olha lá no templo o irmão desiludido
Louco muito louco por um pouco de alívio
Sacaram de uma sacola era esmola era o dízimo
Fogueira fumaça carvão, forca fogo a inquisição

Católica religião, demagogia preconceito
Eu vejo o desrespeito não aceito não respeito
Olha o seu conceito simplismente só rejeito
Entrego ao despreso todos seus preceitos

Miscigenação forçada, mãe África estuprada
Nunca descobridores, invasores só canalha
Torturaram minhas raízes e nos deram marquises
Agora surgi o revide, Gato Preto te agride

O guerreiro vai atacar, yalorixá yoruba
Keto e nação banto, nago povo africano
Nos roubaram a riqueza, a beleza a nobreza
A terra a natureza, desimaram a realeza

Arquitetura, estrutura, medicina e cultura
Diamantes agricultura, e todo poder de cura
Na minha religião, inquisição e tortura
O ataque o massacre, o abate os combate

As brigas as intrigas na Serra da barriga
Negros combatentes luzitanos covardes
A trincheira tá armada a arena e palmares
Católica covarde, com o apoio do padre

Resultado do pecado, esticado lá na esquina
Pro negro só chacina, uns roubaram a auto estima
Ter cabelo crespo, e vergonha pra menina
Se somos lembrado, no pesado ou na faxina

LUTHER KING, ZUMBI, MARIGHELA, X, E NELSON MANDELA
O POVO PRETO AVANTE NA GUERRA
SABOTAGE E JR ABUJAMAL E DONISETE



Devastaram o império, saquiaram o minério
Era a peste branca, apoiada pelo clero
Mais eu quero, quero, e espero, sigo meu critério
Mas sempre, sempre reto, tipo certo sempre alerto

Isso sempre quero, seguir reto meu protesto
Chicote rasgou corpo, sangue rolou no rosto
O carrasco achou pouco, era sangue de um porco
Assim ele descia, chicote, chibata descia

O irmão traidor, me persegue no asfalto
Hoje quatro rodas, ontem cavalo
Hoje é polícia, ontem capitão do mato
Fato do meu passado, não me faço de rogado

Conheço, reconheço, muito bem todos esses fatos
Não me sinto derrotado, vou além conquisto espaço
Preto não é aceito, simplesmente tolerado
Quero a parte no meu prato, do bolo meu pedaço

Patroa muito boa, escraviza “Seu” João
Se gosta da Maria, de vassoura na mão
No tanque lava roupa, e a barriga no fogão
Uma falsa dialética de forma sintética

Ausência de ética, falando em estética
Negro marcado, intitulado plebeu
A África não vale, só padrão europeu
De que o branco é bonito, feio sou eu

Professor me fale, dos meus líderes, martires
Chega de contrastes, ascenção sociedade
Quero a parte que me cabe educação e faculdade
Não quero as calçadas, eu preciso é de aulas

Trabalho informação, não copo de cachaça
O tolo quer maconha, eu prefiro um diploma
Informado, diplomado, doutorado, graduado
Igual a Milton Santos, foi lá no passado

Parto pro debate, digo não à todas grades
Incentivo o ataque, agrupamento pro combate
Quero reparação, por todo massacre
E se eu sou oitenta, cota oitenta pra minha classe

E pra você ouvir, eu vou lhe repetir
Quero a parte que me cabe, quero a parte que me cabe
Criaram novos termos, camuflando o preconceito
Fingindo encobrindo, o desastre que causou

Pretinho, moreninho, mulato homem de cor
Não aceito eu sou negro, eu sou afro-brasileiro
Herdeiros de Zumbi, eu também sou guerreiro
Cartola, Mandela, Portela, Marcos Garvei, Marighela


Revolta da Chibata a Revolta dos Malés
Desmontutu minha nação gege
Meu black, minhas tranças, um exemplo pras crianças
Minhas tranças, o meu black, um exemplo pros moleques

Candomblé, capoeira, feijoada caseira
Foi minha mãe quem criou
Besteira muita asneira, o livro já falou
Princesa Isabel, nunca libertou

Leci Brandão, Preta Anastácia
Benedita e Dandara

Religião, cultura, costumes destrossados por seres que se vangloriavam de princípios superiores aos dos irmãos africanos e indígenas, mas foram eles, os próprios os que se auto-qualificam como civilizados, mas foram eles! Que destruiram índios e negros, destruindo a genuina cultura de cada povo, impondo práticas a atos impuros perante os olhos dos dois povos, violaram terras virgens, mataram, massacraram, estupraram seus filhos, sem respeito algum, fincaram bandeiras em terras alheia, se apossando, rapitando, sequestrando o povo africano.
E assim prosseguia atitudes escravocratas em pról de um único objetivo o lucro fácil ouro, diamante de classe, foram eles, que se escravizaram, mataram, torturaram, mas quem são eles? Os europeus, os norte-americanos foram eles e outros do primeiro mundo, e hoje querem pousar de exemplo, espelho para o mundo.
Depois de centenas de anos de chibatas, e troncos, senzalas, correntes, pelourinho (peça de tortura) nos oferecem uma falsa lei áurea, dona Izabel, outras leis estabelecidas pelos opressores são todas mentirosas.
MAS SEMPRE ONDE HOUVER OPRESSÃO, SEMPRE HAVERÁ UM REBELDE

HERANÇA DA ESCRAVIDÃO
Moreno (a) mulata (o) marrom bombom
Complexo, medo, exclusão social
Favelas, analfabetismo, marcas, tralmas
Sentimento de inferioridade, química no cabelo
Falta de orgulho, alta estima baixa, preconceito
Racismo, dor, lágrimas, sem terras, sem cavalos
Crimes, acusação, desprezo, descaso, danos, descalços
Desconforto, discórdia, desespero, desemprego.

VENENO X ANTÍDOTO
HITLER X MARTIN LUTHER KING
MUSSOLINE X MAHATMA GANDHI
PINOCHÊ X MALCOM X
W. BUSH X MARCOS GARVEI
STALIN X FARRACAN
SALAZAR X MANDELA
NICOLAYTHELTSHESCO X GANGA ZUMBA
FRANCO X GANA ZONA
DOMINGO JORGE VELHO X ZUMBI
ROBERTO MARINHO X GOG
BORBA GATO X MANO BROWN
ANTONIO CARLOS MAGALHÃES X ALTINO GATO PRETO

Gato Preto, nasceu em Ilhéus, BA, e pertence ao grupo A família.

A soma do que somos (Preto Ghóez)

A SOMA DO QUE SOMOS




Olhe bem pra mim e não esqueça disso
Me veja como um bicho
Me trate como um lixo
Nunca fui sujeito homem
Sou o produto do rejeito
Do dejeto
Da fome
Condenado a viver na merda
Na guerra
Nunca fui tão humilhado o quanto sou fera
Sou a soma
O resultado de seus métodos
Nas minhas veias corre o esgoto à céu aberto
Nunca fui feto
Quando muito um parasita
Tomando à força da velha doméstica
Sua própria vida
Ferida aberta ressecada
Escada abaixo na evolução humana
Quem ama não mata, maltrata, aprisiona
Receito
Que pela falta de recreio nas horas
Eu seja
O pobre, a puta, o preto, o feio
A mais pura ruindade
Entre um drink e outro celebrem
Toda a minha infelicidade
12 anos de vida
E já trancafiado numa cela fedida
Cascatas de lágrimas no seio da minha família
Uma salva de palmas nos palcos do genocida
Um número na estatística de mais uma infância perdida
Um gatilho meu melhor amigo, Profissão: perigo
O tucano a serviço da águia
Trás mágoas consigo
Um moleque cheira cola, fuma maconha
Mata e rouba como sonha o imperialismo
Me estuprem, me torturem
Como quer a mídia
Que eu ponho fogo no colchão da burguesia
Se eu não tenho sonhos
Eles tem insônia e inseticida
190 não descansa vem me dedetiza
Baixada, morro, favela, proletários











Pros letrados ensinam
Sangue azul enche a caneta de quem rima
Sou viela, sou da quebra, sou periferia
Um Frankestein latino, um preto nordestino
E nem deu tempo de ser menino
Profanaram meu corpo, meu templo
E eu blasfemo como bate o sino
Enquanto isso intelectuais suínos, sorrindo
Distribuem facas de costa à costa em seus amigos íntimos
Dizia a canção da possessividade
Amigo?
É coisa pra se guardar debaixo de sete chaves
Isso é empírico, se respiro, vivo!
Tenso, logo existo
Nem o dobro da maldade dos traíras
Que só atacam no calado, e do combate se retiram
Puderam acalmar a minha ira
Sou feito de favela, pode ver a etiqueta
Mais um cabeça chata de pele preta
Um desgraçado enviado pelas tretas
Respeita!
A fita eu canto, eu rimo
Quer saber quem eu sou?
Reflita...
Pequenos pezinhos, descalços na trilha
Pequenas mãozinhas, fecham os punhos
E lideram mais um família
Em marcha!
Marcham pelas próprias vidas
De posse da foice, da enxada, do facão
Como mestres da esgrima, revelam tamanha maestria
Celebrando a lida entre irmãos
Duas décadas de luta, e a labuta dá fruta-pão
Pão nosso de cada dia
Entoa a canção da maldição à burguesia
E se as trevas da udr nos armarem uma teia
As almas de Eldorado vem nos alumia
E não é a toa que a internacional ecoa
Bandeira vermelha que tremula e voa
Debaixo de um sol de sertão
Ou cruzando a Ipiranga com a São João
Debaixo da garoa
Todo favelado é sem terra
Liberta a vontade vermelha
Todo sem terra é da quebra











A negritude, atitude semeia
Carreguei o tambor com as vogais
Desrespeitei a concordância verbal
Puxei o cão do ponto continuando
Mudei de tema, teorema, problema aritmético
Eu sou o excedente sem dentes
O fator ético, nego sabido, sujeito eclético
Inconformados os ricos, inventam outro mundo
Do outro lado do muro
Recheiam suas pelúcias
Com o medo do escuro
Só não esqueçam que sou feito de favela
E isso é mais que aço
Comprem belos ternos pros seus cães
E se eu passo:
“Desconjuro”
- Eu ouço
Faça isso não seu moço
Que eu ou tão louco, estranho
Que ainda estando no fundo do poço
Eu uso seu crânio e cavo mais um pouco
Sou feito de favela
A preta velha chorando num final de novela
Um corpo sangrando, a sequela
Minha quebra é playground macabro
Ornamentando com velas
Graças à ROTA eu tropeço
No cemitério clandestino
Gasto toda a tarde de domingo
Eu e meu menino
Montando o quebra-cabeças,
- Ou o quebra-cadáver?
Tanto faz
Eu adoro vê-lo sorrindo
Sou assim mesmo, um erro
O desagradável, o descartável
O memorável nada
Que quando morre vira tudo
Na quebra, vestido de festa é luto
E se não luto, me arrasto ainda vivo
Puto!
Por receber um mundo assim tão imundo
Não é lindo?
Nossas mães que eram moças direitas
Nós sempre fomos zeros à esquerda
Nos rebanhos de ovelhas negras









Descemos ao covil dos lobos, das tretas
E de ovelha à coiote, anote
É só sair da mira da escopeta
Cansei de ser um alvo fixo
Creci prolixo
Ou pro lixo?
Num sei, preciso me repetir
Saber por onde ir
Feito de favela não tem nome
Assim ninguém nota quando some
Então faça a soma
Some a soma do que somos
100 infância
10 preparado
1 fudido
Subtraio o sorriso da cara do inimigo
Multiplico as ações contra o capitalismo
Divido entre os meus a verdade dos livros
Pois a soma do que somos...
Some e assume
O extraordinário como cotidiano
Quando
Todo o dinheiro ou seus donos
Já não somam mais
Que o futuro dos seres humanos
Hermanas, hermanos de tão pretos vermelhos
De tão pobres, guerreiros
A foice e o martelo equaciona
A soma de todo o planeta
Nos afasta dos traíras e das tretas
E a soma do que somos
Torna-se na soma de nossos sonhos
O resultado de igualdade entre os homens

Preto Ghóez (autor de Sociedade do Código de Barras)