segunda-feira, novembro 20, 2006

Chão (Alan Da Rosa)

CHÃO

Desceu pro pé da roda e se benzeu.
Vislumbrou a praça aberta, arroxeando no crepúsculo. Os arrepios do Gunga, do Médio e do Viola ganhavam o vento. Pediu proteção, pra si e pro seu camará. Quem ia com ele pra conversa era um cabra todo de branco.
Saíram de AÚ. Angoleiro, se mantinha próximo à Mãe-Terra, devagar e ligeiro no seu movimento, a guarda constante da cabeça. Floreava e escapava do rabo-de-arraia, já lançando uma chapa como pergunta e se esquivando da ponteira que vinha como resposta. Os olhos do que não era parceiro, era inimigo, descobria agora, brasavam.
ÊÊÊ O FACÃO BATEU EMBAIXO A BANANEIRA CAIU ÊÊÊ
O corpo, o pensar: um só eixo de concentração. Duas armadas já teriam entrado se a atenção não fosse plena. Um cabeça branca lamentava, gargalhava, comandava a função. Um êxtase eletrificou o jogador. Histórias de quilombos, amores... relampeavam nas gargantas.
Num relance, o vulto de uma queixada passou soprando sua orelha: pelos assovios da roda, lembrou que estava só. Era ele e sua mandinga.
QUANDO EU VENHO DE ARUANDÁÁ, NÃO VENHO SÓ, QUANDO VENHO DE ARUANDÊ, NÃO VENHO SÓ.
O pessoal rimava o banzo na melodia. O jogo ia tomando grau. Ele sinalizou pra Chamada. Aquele bruto não sorria, era duro, mas parecia antever seus movimentos. Veio num turbilhão o ensino do Mestre, sempre humilde e exigente: “- É necessidade. Amizade e maldade. Na rua, num confia nem na mãe.”. Saíram colados.Evitou a bica nas costelas, ficando pequenininho. Tava treinado, tinha escorregado por baixo de duas catracas.
Não sabia que o adversário havia sido desprezado uma hora antes, no mesmo momento que ele negociava com o cobrador do busão. Que havia tomado uma boca-de-calça, mesmo sendo treinel: passado carão. Que nas artérias ocultas sob a pele suada e rosada, espocava a ânsia de equilibrar o dia, sobrasse pra qualquer matuto que chegasse.
O São Bento Grande anunciava um espírito, ainda intraduzível, mas já pressentido.
PIMENTA MADURA É QUE DÁ SEMENTE, QUE DÁ SEMENTE, QUE DÁ SEMENTE.
Seguia na dança moleca, sorriso malaco e olhar de assombrado. Rasteiras, cabeçadas: o jogo transbordava tensão. Recordou rodas em que angoleiros haviam derrubado brucutus que exibiam altos cordões. O branco da outra calça estava barrento na bunda. O restante, impecável.Veio à mente o dia anterior, o uniforme da enfermeira, suas luvas plásticas, a visita à mãe no P.S., o esforço da guerreira em expressar sua esperança e esconder a dor, que a contorcia vez em quando naquela cama encarreirada no corredor.Lembrou quando ela pedia uma tesoura, uma colher, pra pôr na batata da perna, pra matar a cãibra que repuxava as varizes, quando ele esfregava álcool nas suas pernas e ela gemia Deus do lado do balaio vazio de chocolates, que não foram vendidos mas apreendidos pelos agentes do trem.
A memória nem lhe havia dado força, a pena por se desligar um instante foi a calcanheira nas têmporas. Antes do crânio machucar o chão, ainda ouviu a arrelia dos capoeiras, na roda do mundo.

1 Comments:

Blogger Sybille Ariano said...

Alan,
Muito Bom!
Abraço
Sybille

3:40 PM  

Postar um comentário

<< Home